“mensagem” da fotografia, sua agressão. Imagens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografias de moda e de animais) não são menos agressivas do que
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Ahumanidade permanece, de forma impenitente’ na cavernade Platão, ainda se regozijando, segundo seu costume ancestral,com meras imagens daverdade. Mas ser educado por fotos não é omesmo que ser educado porimagens mais antigas,mais artesanais.Em primeiro lugar, existem à nossavolta muito mais imagens quesolicitam nossa atenção. O inventário teve início em 1839, e, desdeentão, praticamente tudo foi fotografado, ou pelo menos assimparece. Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condi-ções do confinamento na caverna: o nosso mundo.Ao nos ensinarum novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas idéiassobre o quevale apenaolhare sobre o quetemos o direito de obser-var. Constituem uma gramâticae, mais importante ainda, umaética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividadefotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundointeiro em nossa cabeça – como uma antologia de imagens.Colecionar fotos é colecionar o mundo. Filmes e programasde televisão iluminam paredes, reluzem e se apagam; mas’ comL3
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fotos, a imagem é também um objeto,leve, de produção barata,fácil de transportar, de acumular, de armazenar. Nofime Les cara-biniers (1963), de Godard, dois lúmpen-camponeses preguiçosossão induzidos a ingressar no Exército do rei mediante a promessade quepoderão saquear, esiuprar, matar oufazer oquebem enten-derem com os inimigos, e ficar ricos. Mas a mala com o butim queMichel-Ange e Ulysse ttazem,em triunfo, para casa, anos depois,para suas esposas, contém apenas centenas de cartões-postais demonumentos, de lojas de departamentos, de mamíferos, de mara-vilhas danafineza, de meios de transporte, de obras de arte e deoutros tesouros catalogados de todo o mundo. O chiste de Godardparodia, nitidamente, a magia equívoca da imagem fotográfica. Asfotos são, talvez, os mais misteriosos de todos os objetos que com-põem e adensam o ambiente que identificamos como moderno. Asfotos são, de fato, experiência capturada, e a câmera é o braço idealda consciência, em sua disposição aquisitiva.Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr asi mesmo em determinadarelação com o mundo, semelhante aoconhecimento – e, portanto, ao poder. Supõe-se que uma quedaprimordial- e malvista, hoje em dia- na alienação, a saber, acos-tumar as pessoas a resumir o mundo naformade palavras impres-sas, tenha engendrado aquele excedente de energia fáustica e dedano psíquico necessário para construir as modernas sociedadesinorgânicas. Mas a imprensa parece uma forma menos traiçoeirade dissolver o mundo, de transformá-lo em um objeto mental, doque as imagens fotográficas, que fornecem a maior parte do conhe-cimento que se possui acetca do aspecto do passado e do alcancedo presente. O que está escrito sobre uma pessoa ou um fato é,declaradamente, uma interpretação, do mesmo modo que asmanifestações visuais feitas à mão, como pinturas e desenhos.Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do14mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qual-quer um podefazer ou adquirir.As fotos, que brincam com a escala do mundo, são tambémreduzidas, ampliadas, recortadas, retocadas, adaptadas, adultera-das. Elas envelhecem, afetadas pelas mazelas habituais dos objetos depapel; desaparecem; tornam-se valiosas e são vendidas e compradas;são reproduzidas. Fotos, que enfeixam o mundo, parecem solicitarque as enfeixemos também. São afixadas em álbuns, emolduradas eexpostas em mesas, pÍegadas em paredes, projetadas como diaposi-tivos. |ornais e revistas as publicam; a polícia as dispõe em ordemalfabética; os museus as expõem; os editores as compilam.Durante muitas décadas, o livro foi o mais influente meio deorganizar (e, em geral, miniaturizar) fotos, assegurando dessemodo sua longevidade, se não sua imortalidade – fotos são obje-tos frágeis, fáceis de rasgar e de extraviat -,e um público maisamplo. A foto em um livro é, obviamente, a imagem de uma ima-gem. Mas como é, antes de tudo, um objeto impresso, plano, umafoto, quando reproduzidaem umlivro,perde muito menos de suacaracterística essencial do que ocorre com uma pintura. Contudo,o livro não é um instrumento plenamente satisfatório para pôrgrupos de fotos em ampla circulação. A seqüência em que as fotosdevem ser vistas está súgerida pela ordem das páginas, mas nadaconstrange o leitor a seguir a ordem recomendada, nem indica otempo a ser gasto em cada foto. O filme Si j’avais quatre dromadai’res (1966), de Chris Maker, uma reflexão argutamente orquestradasobre fotos de todos os tipos e temas, sugere um modo mais sutil emais rigoroso de enfeixar (e ampliar) fotos. Tanto a ordem como otempo exato para olhar cada foto são impostos; e há um ganho emtermos de legibilidade visual e impacto emocional. Mas fotostranscritas em um filme deixam de ser objetos colecionáveis, comoainda são quando oferecidas em livros.
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Fotos fornecem um testemunho. AIgo de que ouvimos falarmas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostramuma foto. Numa das versões da sua utilidade, o registro da câmeraincrimina. Depois de inaugurado seu uso pela polícia parisiense,no cerco aos communards,em junho de 1871, as fotos tornaram-seumaútil ferramentados Estados modernos navigilânciae no con-trole de suas populações cadavezmais móveis. Numa outraversãode sua utilidade, o registro da câmera justifìca. Uma foto equivalea uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. Afoto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algoexiste, ou existiu, e era semelhante ao que está na imagem. euais-quer que sejam as limitações (por amadorismo) ou as pretensões(por talento artístico) do fotógrafo individual, uma foto – qual-quer foto – parece ter um arelação mais inocente, e portanto maisacurada, com a realidade visível do que outros objetos miméticos.Os virtuoses da imagem nobre, como Alfred Stieglitz e paulStrand, que compuseram fotos de grande força, e inesquecíveisdurante décadas, ainda tencionavam, antes de tudo, mostrar algo”que existe”, assim como o dono de uma Polaroid, para quem asfotos são uma forma prâticae rápida de tomar notas, ou o fotó-grafo compulsivo com sua Brownie que tira instantâneos comosuvenires da vida cotidiana.Enquanto uma pintura ou uma descrição em prosa jamaispodem ser outra coisa que não uma interpretação estritamenteseletiva, pode-se tratar uma foto como uma transparência estrita-mente seletiva. Porém, apesar dapresunção deveracidade que con-fere autoridade, interesse e sedução a todas as fotos, a obra que osfotógrafos produzem não constitui uma exceção genérica aocomércio usualmente nebuloso entre arte e verdade. Mesmot6quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar arealidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de cons-ciência. Os componentes imensamente talentosos do projeto foto-gráfico do final dadécadade 1930 chamado ContribuiçãoparaaSegurança no Trabalho nas Fazendas (entre os quais estavamWal-ker Evans, Dorothea Lange, Ben Shún, Russel Lee) tiravam inúme-ras fotos frontais de um de seus meeiros até se convencerem de quehaviam captado no filme a feição exata – a expressão precisa dorosto da figura fotografada, capazde amparar suas próprias idéiassobre pobreza,ILlzdignidade, textura, exploração e geometria. Aodecidir que aspecto deveria ter uma imagem, ao preferir uma expo-sição a outra, os fotógrafos sempre impõem padrões a seus temas.Embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, e nãoapenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tantoquanto as pinturas e os desenhos. Aquelas ocasiões em que tirarfotos é relativamente imparcial, indiscriminado e desinteressadonão reduzem o didatismo da atividade em seu todo. Essa mesmapassividade – e ubiqüidade – do registro fotográfico constitui a”mensagem” da fotografia, sua agressão.Imagens que idealizam (a exemplo da maioria das fotografiasde moda e de animais) não são menos agressivas do que obras quefazem da banalidade uma virtude (como fotos de turmas escola-res, naturezas-mortas do tipo mais árido e retratos de frente e deperfil de um criminoso). Existe uma agressão implícita em qual-quer emprego da câmera.Isso está tão evidente nas duas primeirasdécadas gloriosas da foto grafra,l 840 e 1850, quanto em todas as dé-cadas seguintes, durante as quais a tecnologia permitiu uma difu-são sempre crescente da mentalidade que er’catao mundo comouma coleção de fotos potenciais. Mesmo para mestres tão pionei-ros como David Octavius Hill e Julia Margaret Cameron, que usa-vam a câmera como um meio de obter imagens à maneira de um
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pintor, o intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distânciados propósitos dos pintores. Desde o seu início, a fotografia implicava a captura do maior número possível de temas. A pinturajamais teve um objetivo tão imperioso. A subseqüente industriali-zação datecnologia da câmera apenas cumpriu uma promessainerente à fotografia, desde o seu início: democratizar todas asexperiências ao traduzi-las em imagens.Aquela época em que tirar fotos demandava um aparato caroe complicado – o passatempo dos hábeis, dos ricos e dos obsessi-vos- parece, de fato,distante da era das cômodas câmeras debol-so que convidam qualquer um a tirar fotos. As primeiras câmeras,feitas na França e na Inglaterra no início da década de 1 840, só con-tavam com os inventores e os aficionados para operá-las. Uma vezque, na época,não existiam fotógrafos profìssionais, não poderiatampouco haver amadores, e tirar fotos não tinha nenhuma utili-dade social clara;tratava-se de uma atividade gratuita, ou seja,artística, embora com poucas pretensões a ser uma arte. Foi apenascom a industrialização que a fotografia adquiriu a merecida repu-tação de arte. Assim como a industrialização propiciou os usossociais para as atividades do fotógrafo, a reação contra esses usos re-forçou a consciência da fotografi.a como arte.Em época recente, a fotografia tornou-se um passatempoquasetão difundido quanto o sexo e adança-o que significa que,como todaformade arte de massa, afotografianão épraticadapelamaioria das pessoas como uma arte. É sobretudo um rito social,uma proteção contra a ansiedade e um instrumento de poder.Comemorar as conquistas de indivíduos tidos como mem-bros da famflia (e também de outros grupos) é o uso popular maisantigo da fotografia. Durante pelo menos um século a foto de casa-r8mento foi umaparte da cerimôniatanto quanto as fórmulasverbaisprescritas. As câmeras acompanham avida da família’ Segundo umestudo sociológico feito na França, a maioria das casas tem umacâmera, mas as casas em que há crianças têm uma probabilidadeduas vezes maior de ter pelo menos uma câmera, em comparaçãocom as casas sem crianças. Não tirar fotos dos filhos, sobretudoquando pequenos, é sinal de indiferençapateÍna, assim como nãocomparecer à foto de formatura é um gesto de rebeldia juvenil’Por meio de fotos, cada familia constrói uma crônicavisual desi mesma – um conjunto portátil de imagens que dá testemunhoda sua coesão. Pouco importam as atividades fotografadas, con-tanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A fotografia se tornaum rito da vida em família exatamente quando, nos países emindustrialização na Europa e na Améric a, a própria instituição dafamília começa a sofrer uma reformulação radical’ Ao mesmotempo que essa unidade claustrofóbica, a família nuclear, eratalhada de um bloco familiar muito maior, a foto grafi a se desenvol-via para celebrar, e reafirmar simbolicamente, a continuidadeameaçada e a decrescente amplitude da vida familiar. Esses vestígiosespectrais, as fotos, equivalem à presença simbólica dos pais quedebandaram. Um álbum de fotos de família é, em geral, um iílbumsobre a famflia ampliada – e, muitas vezes, tudo o que dela resta’Assim como as fotos dão às pessoas a posse imaginária de umpassado irreal, também as ajudam a tomar posse de um espaço emque se acham inseguras. Assim, a fotografia desenvolve-se naesteira de uma das atividades modernas mais típicas: o turismo.Pela primeiravezna história, pessoas viajam regularmente, emgrande número, paraforade seu ambiente habitual, durante bre-ves períodos. Parece decididamente anormalviajar por prazer semlevar uma câmera. As fotos oferecerão provas incontestáveis deque a viagem se realizou, de que a programação foi cumprida, de19
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em curso, e qualquer que seja seu caráter moïal, deve ter caminholivre para prosseguir até se compls[31- de modo que outra coisapossa vir ao mundo: a foto. Após o fim do evento, a foto ainda exis-tirá, conferindo ao evento uma espécie de imortalidade (e deimportância) que de outro modo ele jamais desfrutaria. Enquantopessoas reais estão no mundo real matando a si mesmas oumatando outras pessoas reais, o fotógrafo se põe atrás de suacâmera, criando um pequeno elemento de outro mundo: o mun-do-imagem, que promete sobreviver a todos nós.Fotografar é, em essência, um ato de não-intervenção. Partedo horror de lances memoráveis do fotojornalismo contemporâ-neo, como a foto do monge vietnamita que segura uma lata degasolina, a de um guerrilheiro bengali no instante em que golpeiacom a baioneta um traidor amarrado, decorre da consciência deque se tornou aceitável, em situações em que o fotógrafo tem deescolher entre uma foto e uma vida, opta pela foto. A pessoa queinterfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode inter-ferir. O famoso filme de DzigaYiértov, (Jmhomem com uma câ-mera(1929),oferece aimagemideal do fotógrafo como alguém emperpétuo movimento, alguém que sedesloca em umpanoramadeeventos díspares com tamanha agilidade e rapidez que qualquerintervenção está fora de questão. Janela indiscreta (1954), deHitchcock, oferece a imagem complementar: o fotógrafo repre-sentado por fames Stewart tem uma relação intensificada comdeterminado evento, por meio da sua câmera, justamente porqueestá com a perna quebrada e confinado a uma cadeira de rodas;estar temporariamente imobilizado o impede de agir sobre aquiloque vê e torna ainda mais importante tirar fotos. Mesmo queincompatível com a intervenção, num sentido físico, usar umacàmeraê ainda uma forma de participação. Embora a câmera sejaum posto de observação, o ato de fotografar é mais do que umaobservação passiva. A exemplo do voyeurismo sexual, é um modo22de,pelo menos tacitamente, e não raro explicitamente, estimular oque estiver acontecendo a continuar a acontecer. Tirar uma foto éter um interesse pelas coisas como elas são, pela permanência dostatus quo (pelo menos enquanto for necessário para tirar uma’boa”foto), é estarem cumplicidade com o que queï que torne umtema interessante e digno de se fotografar – atê mesmo’ quandofor esse o foco de interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa.”sempre pensei em fotografia como uma maldade – e esseera um de seus pontos prediletos, para mim”, escreveu DianeArbus,”e quando fotografeipelaprimeiravez, me senti muito per-versa.” ser um fotógrafo profissional pode ser encarado como algomaldoso, para usar o termo de Darbus, se o fotógrafo procuratemas considerados indecorosos, tabus, marginais. Mas temasmaldosos são mais difïceis de encontrar hoje em dia. E o que vema ser, exatamente, o aspecto perverso de tirar fotos? Se os fotógra-fos profissionais têm, muitas vezes, fantasias sexuais quando estãoatrás da câmera, talvez a perversão resida no fato de que essas fan-tasias sejam, ao mesmo tempo, plausíveis e muito impróprias. EmBlow up (Depois daquele beijo)(1.966), Antonioni leva um fotó-grafo de moda a rondar convulsivamente em torno do corpo deVeruchca, com a câmera a clicar. Maldade, de fato! Com efeito, usaruma câmera não é um modo muito bom de aproximar-se sexual-mente de alguém. Entre o fotógrafo e seu tema, tem de haver distân-cia. A câmera não estupra, nem mesmo possui, embora possa atre-ver-se, intrometer-se, atravessar, distorcer, explorar e, no extremoda metáfora, assassinar – todas essas atividades que, diferen-temente do sexo propriamente dito, podem ser levadas a efeito àdistância e com certa indiferença.Existe uma fantasia sexual muito mais forte no extraordiná-rio filme de Michael Powell intitulado A tortura do medo ( 1960),4
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que não trata de vmvoyeur,como o título sugere, mas de um psi-copata que mata mulheres com uma arma oculta em sua câmera,enquanto as fotografa. Ele não encosta nem uma vez em seustemas. Não deseja seus corpos; quer a presença delas na forma deimagens emfilme-as imagens que as mostram experimentandoa própria morte -r Çu• ele projeta numa tela, em casa, para seupÍazer solitário. O filme supõe uma ligação entre impotência eagressão, entre o olharprofissionalizado e a crueldade, que apontapara a fantasia central, ligada à câmera. A câmera como falo é, nomáximo, uma débil variante da metáfora inevitável que todosempregam de modo desinibido. Por mais que seja nebulosa nossaconsciência dessa fantasia, ela é mencionada sem sutileza toda vezque falamos em’tarregar”e”mirar”a câmera, em”disparar”afoto.A câmera de modelo antigo era mais difícil e mais complicadade recarregar do que um mosquete Bess. A câmera moderna tentaser uma arma de raios. Diz um anúncio:AYashicaElectro-35 cr é acâmeradaera espacial que sua famíliavaiadorar. Tira fotos lindas, de dia ou de noite.Automaticamente. Semnenhuma complicação. É só mirar, focalizar e disparar. O cérebroeletrônico da cr e seu obturador eletrônico farão o resto.Tal qual um carro, uma câmera é vendida como arma predatória- o mais automatizada possível, pronta para disparar. O gostopopular espera uma tecnologiafâcil e invisível. Os fabricantesgarantem a seus clientes que tirar fotos não requer nenhumahabi-lidade ou conhecimento especializado, que a máquinajá sabe tudoe obedece à mais leve pressão da vontade. É tao simples como virara chave de ignição ou puxar o gatilho.Como armas e carros, as câmeras são máquinas de fantasiacujo uso é viciante. Porém, apesar das extravagâncias da lingua-gem comum e da publicidade, não são letais. Na hipérbole que24vende carros como se fossem armas, existe pelo menos estaparceladeverdade: exceto emtempo de guerra, os carros matam mais pes-soas do que as armas. A câmera/arma não mata, portanto a metá-fora agourenta parece não passar de um blefe – como a fantasiamasculina de ter uma arma, uma faca ou uma ferramenta entre aspernas. Ainda assim, existe algo predatório no ato de tirar umafoto. Fotografar pessoas é violá-las, ao vê-las como elas nunca sevêem, ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter;transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamentepossuídos. Assim como a câmera é uma sublimação da arma, foto-grafar alguém é um assassinato sublimado – um assassinatobrando, adequado a uma época triste e assustada.No fim, as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressõesmais com câmeras do que com armas, porém o preço disso será ummundo ainda mais afogado em imagens. Um caso em que as pes-soas estão mudando de balas para filmes é o safári fotográfico, queestá tomando o lugar do safári na África oriental. Os caçadoreslevam Hasselblads emvez de Winchesters; em vez de olhar poruma mira telescópica a fim de apontar um rifle, olham através deum visor para enquadrar uma foto. Na Londres do final do séculoxrx, Samuel Butler se queixava de que havia”um fotógrafo em cadaarbtnto, rondando como um Ieão feroz, em busca de alguém quepossa devorar”. O fotógrafo,agora,ataca feras reais, sitiadas e rarasdemais para serem mortas. As armas se metamorfosearam emcâmeras nessa comédia séria, o safári ecológico, porque a naturezadeixou de ser o que sempre fora – algo de que as pessoas precisa-vam se proteger. Agora, a nat:uteza – domesticada, ameaçada,mortal – precisa ser protegida das pessoas. Quando temos medo,atiramos, mas quando ficamos nostálgicos,tiramos fotos.A época atual é de nostalgia, e os fotógrafos fomentam, ativa-mente, a nostalgia. A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte cre-25
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puscular. A maioria dos temas fotografados tem, justamente emvirtude de serem fotografados, um toque de páthos.Um tema feioou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atençãodo fotógrafo. Um tema belo pode ser obj eto de sentimentos pesaro-sos porque envelheceu ou decaiu ou não existe mais. Todas as fotossão memento mori.Tirar uma foto é participar da mortalidade, davulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). |us-tamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, todafoto testemunha a dissolução implacável do tempo.As câmeras começaramaduplicar o mundo no momento emque a paisagem humana passou a experimentar um ritmo vertigi-noso de transformação: enquanto uma quantidade incalculável deformas devidabiológicas e sociais é destruídaem um curto espaçode tempo, um aparelho se torna acessível para registrar aquilo queestá desaparecendo. A melancólica Paris, de textura intricada, deAtget e Brassai, desapareceu em sua maior parte. A exemplo dosparentes e amigos moÍtos, preservados no iílbum de famflia, cujapresença em fotos exorciza uma parte da angústia e do remorsoinspirados por seu desaparecimento, as fotos dos arrabaldes agoradevastados, das regiões rurais desfiguradas e arrasadas, supremnossa relação portátil com o passado.Uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova deausência. Como o fogo da lareira num quarto, as fotos – sobre-tudo as de pessoas, de paisagens distantes e de cidades remotas, dopassado desaparecido – são estímulos para o sonho. O sentido doinatingível que pode ser evocado por fotos alimenta, de forma di-reta, sentimentos eróticos nas pessoas para quem a desejabilidadeé intensificada pela distância. A foto do amante escondida na car-teira de uma mulher casa da, o cartaz de um astro do rock pregadoacima da cama de um adolescente, o broche de campanha, com orosto de um político, pregado ao paletó de um eleitor, as fotos dosz6filhos de um motorista de tiáxi coladas no painel do carro – todosesses usos talismânicos das fotos exprimem uma emoção senti-mental e um sentimento implicitamente mágico: são tentativas decontatar ou de pleitear outra realidade.As fotos podem incitar o desejo da maneira mais direta e uti-litária – como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplosanônimos do desejável com o fim de ajudar a masturbação. Oassunto é mais complexo quando as fotos são usadas para estimu-lar o impulso moral. O desejo não tem história – pelo menos eleé experimentado, em cada momento, como algo totalmente emprimeiro plano, imediato. É suscitado por meio de arquétipos e é,nesse sentido, abstrato. Mas os sentimentos morais estão embuti-dos na história, cujos personagens são concretos, cujas situaçõessão sempre específicas. Assim, regras quase opostas são válidasquando se trata do emprego das fotos para despertar o desejo epara despertar a consciência. As imagens que mobilizam a cons-ciência estão sempre ligadas a determinada situação histórica.Quanto mais genéricas forem, menor a probabilidade de seremeficazes.Uma foto qrLe traz notícias de uma insuspeitada região demiséria não pode deixar marca na opinião pública, a menos queexistaum contexto apropriado de sentimento e de atitude.As fotostiradas por Mathew Brady e seus colegas dos horrores nos camposde batalha não diminuíram em nada o entusiasmo das pessoaspara levar adiante a Guerra Civil. As fotos de prisioneiros esquelé-ticos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniãopública dos nortistas – contra o Sul. (O efeito das fotos deAnder-sonville talvez se deva, em parte, à própria novidade que era, naépoca,ver fotos.) A compreensão política a que muitos america-
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nos haviam chegado na década de 1960lhes permitiu, ao olharpara as fotos, tiradas por Dorothea Lange, de descendentes dejaponeses sendo transportados para campos de prisioneiros nacosta oeste dos Estados Unidos em 1942, reconhecer qual era defato o tema das fotos – um crime cometido pelo governo contraum grupo numeroso de cidadãos americanos. Poucas pessoas queviram essas fotos na década de 1940 poderiam ter uma reaçãotãoinequívoca; o espaço parataljulgamento estavaocupado pelo con-senso afavordaguerra. Fotos não podem criarumaposição moral,mas podem reforçá-la- e podem ajudar a desenvolver umaposi-ção moral ainda embrionária.Fotos podem ser mais memoráveis do que imagens em movi-mento porque são uma nítida fatia do tempo, e não um fluxo. Atelevisão é um fluxo de imagens pouco selecionadas, em que cadaimagem cancela a precedente.Cada foto é um momento privile-giado, convertido em um objeto diminuto que as pessoas podemguardar e olhar outras vezes. Fotos como a que esteve na primeirapâginade muitos jornais do mundo eml972- uma criança sul-vietnamita nua, que acabara de ser atingida por napalm ameri-cano, correndo por uma estrada na direção da câmera, de braçosabertos, gritando de dor – provavelmente contribuíram maispara aumentar o repúdio público contra a guerra do que cemhoras de barbaridades exibidas pela televisão.Seria bom imaginar que o público americano não teria semostrado tão unânime em seu apoio à GuertadaCoréia se tivessedeparado com provas fotográficas da devastação da Coréia, umecocídio e um genocídio, em certos aspectos, ainda mais completodo que o infligido ao Vietnã uma década depois. Mas a suposição éirrelevante. O público não viu tais fotos porque não havia, ideolo-gicamente, espaço para elas. Ninguém trouxe para sua terra natalfotos da vida cotidiana em Pionguiang, para mostrar que o ini-z8migo tinha um rosto humano, a exemplo das fotos que FelixGreene e Marc Riboud trouxeram de Hanói. Os americanos tive-ram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delasvinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bem dife-rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seusesforços para obter tais fotos, visto que o evento fora definido porum número significativo de pessoas como uma feroz guerra colo-nialista.A Guerra da Coréia foi entendida de outra forma- comoparte da justa luta do Mundo Livre contra a União Soviética e aChina -, e, admitida essa caracterização, as fotos da crueldade doilimitado poder de fogo americano não seriam pertinentes.Embora um evento tenha passado a significar, exatamente, algodigno de se fotografar, ainda é a ideologia (no sentido mais amplo)que determina o que constitui um evento. Não pode existir nenhumaprova, fotográfica ou de outro tipo, de um evento antes que o próprioevento tenha sido designado e caracterizado como tal. E jamais é aprovafotogriâfica que pode construir-mais exatamente, identificar-os eventos; a contribuição dafotografiasemprevem após adesig-nação de um evento. O que determina a possibilidade de ser moral-mente afetado por fotos é a existência de uma consciência políticaapropriada. Sem umavisão política, as fotos do matadouro dahistó-ria serão, muito provavelmente, experimentadas apenas como irreaisou como um choque emocional desorientador.Anaturezado sentimento, até de ofensamoral, que as pessoaspodem manifestar em reação a fotos dos oprimidos, dos explo-rados, dos famintos e dos massacrados depende também dograu de familiaridade que tenham com essas imagens. As fotos deDon McCullin dos biafrenses magérrimos no início da décadade 1970 produziram menos impacto, para alguns, do que as fotos deWerner Bischof das útimas indianas da fome no início da décadade 1950, porque estas imagens tornaÍam-se banais, e as fotos das
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